Jundiaí, 21 de Outubro de 2020
Marina,
Essa carta é pra lembrar da nossa história, que a gente nunca vai parar de construir, porque já está entranhada no nosso ser. E é lindo me sentir parte. Você vai me falar umas coisas boas dessa carta, que gosta do meu jeito fora do padrão de ser sensível, essas coisas lindas que você me fala e eu finjo que não me emociono... Se, em algum momento, passar pela sua cabeça a ideia de retribuir, cante. Não cante pra mim, cante pro Mundo... Ou dance, dance pro Universo. Viva sua arte, que é sua essência, e ela vai perfumar o mundo inteiro!
Gabi.
Salvador, novembro de 2020
E eu penso: me lasquei!
Jundiaí, 13 de outubro de 2020
Escrevo essa carta pensando que precisamos estar juntos, ainda que seja pra contar o ordinário dos dias - que consiste em novas rachaduras nas cutículas, nos desarquivamentos de algumas caixas de traumas antigos e na saudade de um tempo que nunca existiu: saudade do futuro.
Tenho estado mais melancólica e com preguiça da terapia... Tem sido difícil continuar por mim, então penso em continuar por nós - grupo, espécie, pacto coletivo de sobrevivência, nesse mundo de tanta doença mental...
Para o ordinário dos dias, tenho tido alguma força, ou alguma sorte, deve ser a tal da resistência: só na menor parte dos dias meus demônios me vencem - mas confesso que me cansa um pouco quando são dias seguidos.
Tenho visto a vida de um jeito dolorido e estado um pouco dramática, mas estou firme. Com certeza já estive pior em tempos mais fáceis, então talvez esteja crescendo. Talvez estejamos todos crescendo e pela primeira vez estejamos nos olhando o suficiente para enxergar o processo...
Desejo o bem e que na maioria dos dias vençamos nossos demônios, mas que não desanimemos nos dias em que não os vencermos - sempre há mais um dia e no amanhã sempre se é mais forte. Não duvidem nunca da sua força, nem da coragem, mas avaliem o conselhos do medo, ele evoluiu conosco enquanto espécie.
Tem sido difícil estar perto - perto dos outros, perto de mim, perto do que sinto de verdade, perto de qualquer coisa mais verdadeira que esse isolamento que tem se imposto a quem ainda acredita que somos mais que números... Sigo com uma vontade gigante de abraçar e ser abraçada, com uma vontade gigante de encontrar o outro e de me perder em estradas que levam ao outro - a outros "outros", nesse fluxo lindo que é o conhecer, vida afora.
O perto é um paradoxo, que chama e repele. Queremos os corpos perto, mas continuaremos a olhar pelos olhos dos celulares? Que faremos dos corações, finalmente estando lado a lado? Estamos prontos para essa ponte, estando tão desligados de nós mesmos?
Eu queria tentar, o lado a lado, de coração perto. Tentar o abraço. Mas enquanto a alma não estiver pronta e empática, não faz nem sentido: alguma coisa muito maior é ruptura... E é algo ainda maior que a ruptura que, ao escrever meus textos e essa carta, tento estabelecer. Não sei expressar algo tão grande, talvez seja o derradeiro abraço ou a ponte sobre os múltiplos abismos, algo que nos una para além de nossa história de separação, para além da perpetuação das hierarquias e opressões, para além de tudo o que causou inequidade e dor.
Repito: eu queria tentar, o lado a lado, de coração perto. Tentar o abraço. De todos com todos, respeitando as histórias de dor e tratando as feridas juntos, enquanto humanidade. Juntos. Promete que tenta também?